- 05 de abril de 2019

A economia da longevidade*

0

Foto: ReproduçãoOs nove irmãos somam 827 anos de idade. Consolata, a mais velha, tem 106 anos, e Claudina, a que vem em seguida, 100. Há no mundo cerca de 340 mil centenários.

Em quatro décadas, o número deverá subir para 3,2 milhões. E isso será só o começo. Metade das crianças que nascem hoje em países ricos ou nas camadas mais abastadas dos emergentes deverá passar dos 100 e repetir a história da família Melis. No fim do século, a expectativa de vida ao nascer deverá chegar a 82 anos — hoje está em 70.

Isso se os avanços na área científica continuarem no ritmo atual. Mas as pesquisas recentes sobre as doenças que mais matam — as cardiovasculares, os derrames, as infecções respiratórias, o diabetes e o câncer — sugerem que a expectativa de vida poderá chegar perto de 100 anos.

“Estimo que estejamos acrescentando 2,5 anos por década. Ou seja, a cada hora, ganhamos 15 minutos”, diz o economista Ronald D. Lee, professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e um dos demógrafos mais respeitados do mundo.

Se, além desses avanços mais tradicionais, os cientistas conseguirem viabilizar tratamentos revolucionários que “atrasem” nosso relógio biológico, não está descartada a hipótese de um ser humano viver até 150 anos — pelo menos no terreno da teoria. Parafraseando o economista John Maynard Keynes, é possível que, no longo prazo, estejamos quase todos vivos.

O fenômeno do aumento da expectativa de vida, aliado à queda dos índices de natalidade, mudará a cara do mundo. Segundo os dados mais moderados, até 2050 as faixas etárias acima dos 50 anos passarão do atual 1,5 bilhão de indivíduos para 3,1 bilhões. Já a população de crianças e adultos jovens crescerá bem menos.

Em quatro décadas, as pessoas com 50 anos ou mais serão mais da metade da população na Coreia do Sul e no Japão.
Será, enfim, um mundo grisalho. E não se trata de exclusividade de países ricos. China e Rússia estarão em uma situação semelhante — no Brasil, as pessoas com mais de 50 serão 42% da população em meados do século.

Pelos cálculos da ONU, o ano de 2047 será um marco: pela primeira vez haverá um número maior de pessoas com mais de 60 anos do que com menos de 15. Não apenas viveremos mais. Viveremos mais com mais saúde.

Para uma sociedade historicamente acostumada a cultuar a juventude, o fato de que o mundo terá cada vez mais pessoas de meia-idade e idosos costuma ser associado a problemas. É claro que eles existem, mas vale a pena registrar o essencial. Garantir mais e melhores anos de vida é a maior vitória da humanidade até agora — ou alguém aí está triste com a perspectiva de que vai viver mais do que seus antepassados?

Na esfera econômica, o envelhecimento também é uma boa notícia, como já comprovam dados dos Estados Unidos, país que costuma antecipar as tendências que depois se espalham. Os 106 milhões de americanos nascidos de 1946 a 1964, conhecidos como baby boomers, estão cheios de fios brancos.

Considerados o grupo que forjou a sociedade de consumo, eles estão mais maduros, mas continuam enchendo lojas e shopping centers. Um estudo da consultoria inglesa Oxford Economics, ligada à Universidade de Oxford, diz que os americanos com 50 anos ou mais movimentam 7,1 trilhões de dólares por ano — se formassem um país independente, seriam o terceiro maior PIB, atrás de Estados Unidos e China.

Os baby boomers são líderes de compras em 119 das 123 categorias de bens de consumo, controlam 80% da riqueza e gastam 90 bilhões de dólares por ano em carros — 28% mais do que os com menos de 50.

Essa geração é a primeira que cresceu com aparelhos eletrônicos dentro de casa e testemunhou o surgimento do computador e da internet. Isso faz com que seja formada por ávidos consumidores de tecnologia. Uma pesquisa do instituto Pew Research Center acompanhou o avanço da internet entre os americanos mais velhos.

No ano 2000, apenas 36% das pessoas na faixa de 50 aos 65 anos já haviam usado a internet. Em 2012, esse número chegou a 85%. De acordo com um levantamento da consultoria Forrester Research, os gastos com tecnologia de pessoas na faixa dos 50 aos 64 anos nos Estados Unidos representaram 40% do mercado de produtos tecnológicos. Pelos cálculos da consultoria Nielsen, 32% deles têm smartphone e, ao todo, gastam 12% mais em compras online do que a geração de 35 a 46 anos.

Olhar o passado frequentemente ilumina os caminhos à frente. Os economistas Kevin M. Murphy e Robert H. Topel, da Universidade de Chicago, contabilizaram o valor econômico gerado pelo aumento da expectativa de vida nos Estados Unidos de 1970 a 2000 e chegaram a um resultado surpreendente.

A vida média no período passou de 70 para 78 anos, e isso gerou 3,2 trilhões de dólares a mais de renda por ano. Trata-se de um valor apenas de referência, que não entrou na contabilidade do PIB. “Esse bônus veio principalmente pela redução de mortes prematuras causadas por ataques do coração e câncer.

É uma geração mais saudável, que conseguiu produzir mais por mais tempo”, diz Topel. Por isso, é importante que um eventual avanço da longevidade seja acompanhado de melhora na qualidade de vida. “Adicionar anos de vida pode não ter tanto valor assim. A menos que uma pessoa de 100 anos possa viver como uma de 60.”

No Japão, um dos 32 países em que a expectativa já entrou na casa dos 80 anos, 44% dos gastos pessoais são feitos por consumidores com mais de 60. Lá, os baby boomers têm uma imagem jovial de si mesmos — sentem-se com dez anos a menos do que têm — e são responsáveis por popularizar hábitos de consumo americanos.

Uma pesquisa do instituto Chartered Insurance, associação de profissionais da área financeira, mostra que 80% da riqueza e do patrimônio no Reino Unido está nas mãos dos baby boomers, valor que chega a 8,3 trilhões de dólares.
No Brasil, o consumo das pessoas acima dos 50 anos é de 917 bilhões de reais, segundo levantamento feito para¬ EXAME¬ pela empresa de geomar¬keting Escopo, de São Paulo. Elas gastam por ano quase 135 bilhões de reais em alimentos e bebidas, 64 bilhões em carros, 49 bilhões em artigos de vestuário, 24 bilhões em produtos de higiene e beleza e 12 bilhões em viagens.

Segundo um estudo da consultoria Nielsen, ao todo esse grupo responde por 40% dos gastos no país. “São consumidores tratados como pais e avós sem desejos próprios. Mas essa turma está gastando cada vez mais com a própria satisfação”, diz Geraldo Ferreira, diretor da Escopo.

Assim como ocorre nos Estados Unidos, os brasileiros com mais de 50 são ávidos por tecnologia. De 2005 a 2011, o número deles na internet cresceu 222%, para¬ 8,1 milhões. A empresa de pesquisas americana comScore apurou em agosto que 84% dos internautas brasileiros com mais de 55 anos estão presentes no Facebook.

Mercados como carros de luxo perderiam boa parte da força sem os consumidores de cabelos brancos. “Os clientes com 50 anos ou mais representam 30% das vendas da Audi no Brasil. É um público fiel e exigente”, diz Thiago Lemes, gerente nacional de vendas da Audi.

A força dos consumidores maduros é explicada pelo chamado bônus demográfico. Existem dois tipos de bônus: o primeiro, mais conhecido, ocorre quando o número de pessoas em idade economicamente ativa é muito maior do que a soma de crianças e idosos. Hoje, para cada dez trabalhadores, há cinco inativos que precisam ser sustentados.

Já o segundo bônus demográfico trata do aumento da fatia dos trabalhadores de cabelos brancos — a faixa dos 50 aos 70 anos. Mais educada e preparada do que seus pais e avós, a atual geração de trabalhadores maduros tem um impacto maior sobre a produção de riqueza — e, consequentemente, sobre o consumo.

Mas o grande diferencial do segundo bônus tem a ver com a propensão dos mais velhos a poupar. À medida que o país tenha um número maior de pessoas acima dos 50 anos, a tendência é que a poupança nacional cresça, financie investimentos e sirva de motor para o crescimento econômico.

Como as taxas de natalidade estão caindo, o primeiro bônus tem data para acabar. Calcula-se que o Brasil viverá seu ápice em 2022, quando a proporção de trabalhadores em relação aos inativos será maior. Já o segundo bônus começa agora e será mais duradouro. Isso porque a faixa dos mais velhos tende a crescer cada vez mais.

Em 2010, os brasileiros com 50 anos ou mais eram 38 milhões. Em 2050, serão 98 milhões. Um estudo do economista Ricardo Brito, professor do Insper, em São Paulo, estima que o segundo bônus demográfico tem potencial para impulsionar um avanço anual¬ de 2% no PIB por várias décadas. “Para isso se tornar realidade, o governo só precisa fazer reformas que incentivem as pessoas a poupar”, diz Brito.

O efeito mais imediato dessa nova demografia brasileira já pode ser sentido nas previsões do varejo. Pelos cálculos da Escopo, nos próximos quatro anos, o consumo das pessoas com 50 anos ou mais no Brasil deverá crescer 35%. Em países com taxa de envelhecimento maior, como a França, as projeções revelam um fenômeno mais acentuado.

De acordo com a consultoria americana McKinsey, os franceses acima dos 55 anos deverão responder por dois terços do incremento do consumo até 2030, estimado em 270 bilhões de euros. Nos Estados Unidos, em 2032, a turma dos que terão 50 anos ou mais deverá girar 13,5 trilhões de dólares — metade do PIB do país.

Normalmente, é direta a associação entre juventude e maior disposição ao trabalho. Por isso, é comum achar que o envelhecimento tira o ímpeto da economia. Mas não é bem assim — felizmente. Um estudo do Centro de Pesquisas para a Aposentadoria, da Universidade de Boston, indica que os americanos com idade entre 60 e 74 anos são mais produtivos que jovens de até 25 anos.

Atualmente, os trabalhadores com mais de 60 anos representam 10% da força de trabalho do país. Até 2025, quando o americano mais jovem da geração baby boomer completar 61 anos, a expectativa é que representem 13% do total.

Para o autor do estudo, o economista Gary Burtless, a percepção de que os trabalhadores mais velhos são menos produtivos deverá cada vez mais deixar de fazer sentido. Isso porque eles são cada vez mais preparados, ativos e saudáveis. Essa previsão está baseada nas atuais pesquisas desenvolvidas pela indústria farmacêutica — que indicam uma vida longeva e com saúde.

O mapeamento do genoma humano, em 2003, impulsionou dramaticamente o avanço da biotecnologia — uma técnica de produção de remédios que, em vez de componentes químicos, usa células e outros organismos vivos para tratar doenças.
“Uma década depois da decodificação do genoma humano, ¬estamos começando a perceber seu potencial. Por isso, temos melhor com¬preen¬são das doenças e da biologia humana”, diz o americano Jack Watters, vice-presidente de assuntos médicos da Pfizer.

Hoje, um terço dos investimentos feitos por laboratórios e universidades em novos remédios, cerca de 56 bilhões de dólares, está ligado à biomedicina, muito eficaz no combate a algumas das doenças que mais matam idosos e os deixam com a saúde fraca nos anos finais.

O valor é mais do que o dobro do total aplicado há dez anos. No começo da década passada, havia apenas um biotecnológico no ranking dos dez remédios mais vendidos. No ano que vem serão sete, e a tendência é que o número cresça. Segundo um estudo publicado em junho pela empresa americana de pesquisas científicas Battelle, o impacto econômico do mapeamento genético até agora é de 796 bilhões de dólares.

O barulho em torno do código genético foi tão grande que alguns bilionários, como o mexicano Carlos Slim, o segundo homem mais rico do mundo, decidiram aumentar as doações para centros de pesquisa.

Nem tudo são flores

O aumento da longevidade, porém, trará uma série de desafios para a humanidade — a começar pelo tamanho da população. Para a canadense Sonia Arrison, professora da Singularity University, que funciona no campus da agência espacial americana Nasa, isso não será um problema.

Autora do bestseller 100 Plus (Mais de 100, numa tradução livre), Sonia acredita que os avanços tecnológicos, como o aumento da produtividade da agricultura e a dessanilização da água do mar, permitirão que o planeta dê conta do aumento do número de pessoas.

Para a maioria dos economistas que se debruçam sobre a questão da longevidade, no entanto, a questão é mais complexa. A começar pela previdência, vista como uma bomba-relógio. Nesse sentido, o envelhecimento é democrático. Desafia os governantes de países emergentes e desenvolvidos.

Até o momento não há uma fórmula exata de como solucionar o problema. Na Europa, assim como no Brasil, o custo das aposentadorias e pensões representa 13% do PIB da região — ou 2,2 trilhões de dólares. Nem mesmo a Alemanha, apontada pela ONU como um dos cinco melhores países para envelhecer, consegue assegurar um padrão de vida confortável a seus idosos.

Estima-se que 15% da população alemã com mais de 65 anos viva com menos de 1 200 euros por mês, o que os coloca na faixa de pobreza. Qualquer que seja a solução para essa questão, ela passará pelo aumento da idade mínima de aposentadoria — em linha com o que 20 dos 28 países da União Europeia já decidiram fazer até o fim desta década.

Para quem tem a perspectiva de viver muitos anos mais, a mudança das regras da aposentadoria é o preço a pagar.
Viver mais, afinal, pode significar saborear uma existência longa, saudável e também mais produtiva. Bem-vindo à economia da longevidade.

*Exame

Compartilhe.

Leave A Reply