- 06 de abril de 2019

Miopia imobiliária

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Foto: ReproduçãoO edifício situado em um bairro de classe média alta é “moderno” e “funcional”. Sofisticado na aparência, destaca-se no panorama clássico das novas arquiteturas da cidade. Por que quase acabou com a alegria?

1ª grande decepção: o interfone era praticamente invisível, muito bem disfarçado na grade majestosa;

2ª importante decepção: o acesso à entrada monumental se fazia através de uma escada com degraus altos, sem suportes laterais e dificultando a escalada de minha esposa com problemas de forte desgaste da articulação dos joelhos sob tratamento especial;

3ª formidável decepção: o belíssimo “hall” da entrada em mármore claro apresentava três conjuntos de escadas com uma dezena de degraus altos. Cada uma dava para um local específico: hall de recepção de visitas, espaço para leitura e acesso para salão de festas e setor de recreação. Era impossível chegar a qualquer um deles para quem já não possui articulações, ossos e músculos de menos de setenta anos.
A ideia que se plantou foi a de que as áreas sociais do hall de entrada não passavam de ilusórios cenários para ver de longe e não para curtir com a família e amigos. Era acreditar nisso para não ter que considerar o arquiteto ou arquitetos absolutamente analfabetos da situação e perspectivas demográficas do País. Miopia, talvez!
Refeitos da múltipla decepção, o elevador nos levou até o apartamento desejado.
Melhor recepção não poderia haver. Calor humano, elegância no trato e gentileza de anfitriões informais apagaram as falhas construtivas pelas quais as pessoas que ali estavam não tinham qualquer culpa.
Por uma questão de logística iniciamos pela cozinha já que trouxéramos uma contribuição gastronômica para o almoço.
Adentramos a seguir o setor social e nos deparamos com uma agradável e bem mobiliada sala de jantar que ficava conjugada com uma espetacular sala de estar, ampla, com sacada em ângulo duplo revelando uma vista detalhada de boa parte do horizonte da maior cidade brasileira. Aí então:

4ª destrutiva decepção: o acesso à sala de estar fantástica só se tornava possível através de uma escada de três degraus altos, sem barras laterais. A minha esposa só desceu depois do almoço porque não aguentaria o esforço de passar por aquela barreira mais de uma vez durante a tarde. Quando o fez teve auxílio de um amigo que percebeu a dificuldade dela em um momento em que me distraí.

Como é que o arquiteto ou arquitetos consideram adequado criar um cômodo sem condições de acessibilidade para VIPPES? Será que a estética arquitetônica não leva em conta as condições físicas dos moradores? Será que os arquitetos e construtores não sabem que vinte por cento da população de hoje já tem mais de cinquenta anos? Será que eles pensam que o mundo para jovens será eterno? Será que eles não possuem nenhum parente com idade superior a meio século de vida? Será que em suas famílias não há deficientes físicos de nenhuma espécie? Todos os amigos também são perfeitos atletas e vacinados contra qualquer patologia degenerativa? Será que suas criações não devem durar mais que uma única geração? Será que nunca foram a um oftalmologista e, portanto, não conseguem ver os números nas tabelas demográficas do IBGE? Será que erraram nas medidas e as plantas saíram com erros construtivos impossíveis de ajustes?
Será que para esses arquitetos, inacessibilidade é condição imprescindível para a beleza das criações arquitetônicas?

Ou será que os compradores jamais pretenderão receber pais, parentes ou amigos que tenham mais de cinquenta anos ou apresentem alguma deficiência física?
Temos certeza que alguns arquitetos não compareceram às aulas com o tema central da “acessibilidade”. Apesar de escasso, ainda dá tempo para evitar a construção de elefantes brancos inacessíveis para a população que mais cresce no País, a dos VIPPES.

G. Hansen Jr.

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